Quando um ano
começa difícil, a esperança e o sucesso parecem estar longe. O problema não era
só esse, o ano não havia só começado entre choros e pensamentos depressivos,
ele havia seguido uma linha, uma que começou a desenrolar-se há dois anos e
oito meses atrás.
A chegada a um novo
país, conviver com uma família que não era a sua e possuía uma tradição muito
mais rigorosa — algo que, em alguns momentos levaria às minhas crises tão bem
abafadas debaixo das cobertas —, um idioma que eu estudei com tanto esmero
havia se transformado completamente, estudar em casa por conta própria com
provas presenciais a cada dois meses, comida nova, corpo mudando em efeito
sanfona para se acostumar com os novos químicos e corantes das grandes empresas
alimentícias.
Não faça isso.
Não diga isso.
Onde você vai tão
maquiada? Esse batom vermelho chama muita atenção.
Onde você pensa que
vai vestida desse jeito? Troque de roupa.
Os olhos opacos, ao encarar-me no espelho, eram a sombra de um brilho que uma vez havia habitado o
meu ser. Já não reconhecia a mim mesma fazia um ano. O rosto era meu, o corpo
era meu, as roupas eram minhas, mas quem era aquela que refletia no espelho? Talvez
o que havia restado de mim, a parte menos autêntica que me fazia lembrar da
vida e da coragem que um dia irradiava do meu corpo.
Então vieram as
crises, havia perdido a minha identidade, a vida não fazia sentido e nem sequer
as minhas decisões eram confiáveis.
O que eu estou
fazendo aqui?
Vale à pena?
Era isso mesmo o
que eu queria ou me enganei esse tempo todo?
Uma e outra vez,
chorei debaixo das cobertas, desejando que o mundo ao meu redor mudasse.
Esperneando com braços e pernas para descarregar aquilo que carregava no meu
peito, transbordando de uma tristeza irremediável que nunca havia sentido.
Eu me dava uma
chance a cada semestre, mas não sabia se poderia fazê-lo mais uma vez. Talvez
fosse a última...
Conversas, gritos,
choros na escuridão.
Decidi que tentaria
pela última vez, da mesma maneira que vinha dizendo desde que cheguei. Mas
dessa vez seria verdade, não aguentaria mais viver o mesmo roteiro durante
tanto tempo, não queria, não aguentaria mais uma rodada. O tempo corria. Estava
muito cansada para fazer qualquer coisa e só deixei que a vida tomasse as rédeas
enquanto o meu cérebro analisava todas as alternativas.
Fui, me joguei novamente
naquilo que chamava de “vida normal”. Suspirei pelos corredores da faculdade,
tudo se repetiria novamente. Fechava e abria os olhos, nada me importava, até
tentava me aproximar das pessoas, mas estava cansada da desconfiança, do
preconceito, da ignorância.
Nova matéria.
Sozinha. Apresentações pessoais. Joguei tudo para o ar, sou Brasileira.
E de repente a vida
começou a mudar. O sorriso, que havia abandonado o meu rosto, voltou com
timidez. As gargalhadas vieram um tempo depois, eu já havia esquecido do som
delas, da maneira em que meu corpo se movia ao rir tão alto quanto era
possível.
Era um pedaço de
luz iluminando a minha escuridão.
Então a vida
pareceu voltar aos eixos, a realidade que eu conhecia tão bem ainda existia, eu
não era louca ou demente, era tudo real. Ainda era possível, eu repetia a mim
mesma. Talvez eu poderia, quem sabe... Viver novamente no mundo do qual eu vim,
aquele que pareceu me abandonar no dia em que cheguei.
As dores ainda
estavam aqui, mas as lágrimas já não caíam tanto quanto antes. Eles, de alguma
forma, me lembravam que existia um mundo melhor fora das paredes que me
cercavam, me mostravam uma parte do mundo a qual pertencia, mas não tinha mais
acesso naquele momento. Eram a esperança de uma vida que poderia ser, mas que
ainda não era.
Sem fazer nenhum
esforço, eu o conheci. Seus olhos eram mais que uma porta de entrada para um mundo
que eu sempre sonhei que existisse. Foi o último sinal de que uma vida melhor me
esperava, se eu tentasse um pouco mais a cada dia. Tudo poderia ser realidade e
a vida que havia saído do meu corpo foi trazida de volta por ele através das
conversas, das risadas e projetos futuros.
As cores da criatividade
fluíam a cada palavra, acrescentando um novo tom à tela de pintura que
desenhávamos com nossos lábios. A cor havia pintado a escuridão.
Passo. A cada passo
que eu dava me levava para outra direção, algumas lágrimas ainda escapavam de
mim quando a outra realidade me atingia, mas eles me seguravam, a âncora para a
realidade a qual eu queria pertencer e que, de alguma maneira, sempre havia
pertencido.
Eu me tornei algo
que não imaginava. Tomei a vida em meus braços antes que escorresse pelas
feridas amargas de memórias recentes. Eu me converti mais uma vez em amiga, amante,
artista — se é que posso me intitular dessa maneira —. Eu me tornei novamente o
que havia deixado ir.
O reflexo no
espelho nunca voltou a ser o mesmo, a mulher parada diante de mim havia se
tornado algo mais. Um simples protótipo do que poderei ser no futuro, se
continuar dando uma chance a mim mesma.
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