Naquele porta-retrato

25.1.19

Imagem por Markusspiske, sob licença Creative Commons.

Caminhei pela casa sentindo o calor sufocante do verão, talvez fosse um gostinho do inferno daquilo que me esperava no futuro. Suor escorria pela testa e eu procurava pelo cômodo mais fresco.

Pés descalços no chão de madeira, não tão frio quanto eu me lembrava. A vizinha deveria estar cozinhando e todo o calor do seu fogão subia para o meu apartamento. 

Inferno pessoal.

Havia dito para ele que deveríamos comprar um ar-condicionado ou, como mínimo, um ventilador. Ele riu, disse que juntaríamos o dinheiro em menos de dois meses e compraríamos o melhor ventilador da loja. Mas ele já não está aqui e o sonho do ventilador parece ser uma memória tão antiga quanto o tempo.

Fechei a cortina de todas as janelas para impedir que o sol entrasse, os vidros altos e quentes causavam a sensação de estar em uma estufa, ou quem sabe em um forno. Queimando lentamente por dentro e por fora. Será que me queriam bem-passada?

Fechei o vidro. O ar quente dançando ao redor do meu corpo só me causava náuseas, a casa inteira girava e meu estômago revirava como se uma grande bolha estivesse presa e não pudesse sair. Eu precisava daquele ventilador, dele.

O apartamento estava vazio, escuro e nem um ar fresco amistoso corria aqui dentro. Era uma prisioneira, o pior é que talvez fosse uma metáfora insólita que simbolizava a minha prisão interna. A música do rádio já não me agradava, os pássaros na janela piavam em tom de misericórdia pela sua partida. O que eu sentia aqui dentro se mesclava em tons de preto e cinza com uma leve pitada de amarelo.

Entrei em seu escritório, sabia que era o cômodo mais frio do apartamento, mas queria evita-lo. Minha pele eriçava só de olhar para aquela mesa de madeira tão bem organizada, as histórias, o computador, os vários cadernos com projetos que nunca chegaram a tornar-se realidade.

Ainda podia imaginá-lo sentado naquela cadeira com o cenho levemente franzido à procura de inspiração. Encarei a porta como se ele pudesse entrar a qualquer momento com o sorriso cativante e piadas idiotas que me faziam rir.

Mas aqui estava eu, dando voltas em um mundo imaginário, sonhando em tocar sua pele outra vez e entramar meus dedos entre os seus cabelos negros como a noite.

Sentei na cadeira em que ele passava a maior parte do dia, as rodinhas rangeram como se agradecessem que alguém a estivesse usando novamente. Inclinei para trás sentindo seu conforto abraçar as minhas costas e enterrei meu corpo naquele acolchoado, lembrando de como era bom estar em seus braços, me envolvendo e puxando contra o seu peito. O roçar de nossas peles suaves.

O calor parecia aumentar, suor escorria pela minha face. Eu precisava daquele ventilador, eu precisava dele.

Tentei levantar daquela cadeira, mas minhas pernas fracas hesitaram quando fiz força para seguir. Eu o vi, parado diante de mim, os olhos castanhos tão profundos quanto a imensidão do céu. Era capaz de jurar que via estrelas no brilho de seus olhos. Os cabelos rebeldes não mudaram ao longo do tempo e nem o sorriso que me derreteu desde o momento em que o conheci.

E logo estava eu, uns cinco quilos mais magra, mas isso nunca o importou, na verdade, ele nunca havia se importado com a minha aparência física, às vezes podia jurar que ele via muito além disso. Meus cabelos castanhos sem nenhum rastro da idade que carregava, os braços ao redor da cintura dele, mais um dia feliz ao seu lado.

Lembro-me bem da brisa amena daquele dia, o sol radiante que nos aquecia, os pássaros que cantavam em sinfonia. Eram outros tempos.

Mas aquela simples imagem não representava tudo o que você foi e tudo o que viria ser. O calor trazia minhas memórias como alucinações, era tudo tão real.

Seu toque.

Sua voz.

Suas palavras.

O sussurrar de palavras cálidas em meus ouvidos.

Como você ousava tomar pose das minhas memórias e gerar lágrimas que saíam de dentro do meu peito? O mesmo em que você se apoiava para escutar os meus batimentos quando estávamos perto. Ainda me lembrava do sorriso estampado em seu rosto quando o coração acelerava ao escutar suas palavras doces.

Agarrei aquele porta-retrato desejando estar ali, estática ao seu lado pela eternidade, mas não era possível, a garota da foto nem reconheceria a senhora que havia me tornado.

Olhei para fora, os pés roçando no tapete, desejando o contato de algo frio. A chuva no horizonte, sinal de que sobreviveria mais um dia na tempestade que era a minha vida.

Enquanto isso, os olhares resplandecentes seguiam naquela foto tão bem guardada naquele porta-retrato.




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